Cerveja caseira
Esqueça as grandes fábricas com publicidades gigantes. É uma pequena sala improvisada. Ao centro, sobre a mesa, está um balde equipado com tecnologia de ponta: na abertura, uma tábua lisa serve de base à trituradora de cevada, centeio ou trigo. O instrutor roda a manivela depressa e o malte vai caindo no recipiente. Cada um pode ser produtor de cerveja ao seu gosto, no seu ritmo. Mais amarga, menos encorpada, mais alcoólica, mais escura. Não há regras absolutas, apenas alguns conselhos. É fácil, garantem. Basta ter paciência. E vontade. E gostar de cerveja. O sabor, o aroma e a textura aperfeiçoam-se lentamente: a técnica tem milhares de anos.
Cervejas há muitas, de muitos sabores, aromas, texturas e feitios. Amarelas, pretas ou ruivas, em copo ou caneca à pressão, continuam a ser uma das bebidas que os portugueses mais consomem, apesar da crise que também aqui se fez sentir. Mas a artesanal parece em contraciclo, conquistando cada vez mais adeptos, mudando hábitos de consumo. A culpa é, em grande parte, dos autodidactas, esses que, tal como os sumérios, fazem experiências. Não prestam culto a Ninkasi, deusa da cerveja, mas combinam na mesma plantas e aromas, e usam mel.A “Maldita” nasceu em 2013 pela mão de Artur e Gonçalo Faustino, pai e filho. É a estrela maior da Faustino Microcervejaria e em 2015 conquistou a medalha de prata na categoria “Dark Beers” do World Beer Aeards, uma espécie de óscares da produção de cerveja artesanal. Outra das premiadas foi a sua irmã ruiva, a English Barleywine, de “aromas frutados e intensos que persistem, acompanhados por leves notas a caramelo. No copo apresenta uma cor acobreada e espuma desvanescente de cor branca”. Uma velha conhecida dos vikings, cujas famílias tinham as suas próprias varas, passadas de geração em geração, para agitar a bebida durante o fabrico. É uma das muitas empresas de cerveja artesanal criadas nos últimos anos que começam a fazer concorrência às marcas industriais.
A “Vadia”, que venceu duas medalhas de ouro, é obra de três amigos: Nicolas, engenheiro cervejeiro francês de formação, Nuno, engenheiro electrónico, e Victor, informático. Quando começaram, em 2007, demoravam entre 10 a 12 horas a produzir as cervejas, e por isso chegavam quase sempre atrasados aos respectivos compromissos, o que lhes valeu a alcunha de “vadios”. Após anos de pesquisa, ensaios e desenvol- vimento de receitas, comercializaram as primeiras bebidas em 2012, já depois de um dos fundadores se ter tornado mestre cervejeiro em França. A Loira, a Preta e a Rubi são apenas três das sete variedades que estão no mercado.
A cerveja “Rapada” foi criada em 2014 para acompanhar os sabores mais característicos da região Serra da Estrela, os queijos. Trata-se da primeira em Portugal a ser pensada de raiz para a harmonização com estes produtos. O nome é uma homenagem à povoação de Santo António do Alva, outrora Rapada, que está representa- da no logo. Segundo a lenda, a designação surgiu porque um dia, ao passar uma sardinheira pela aldeia, a população comprou/rapou tudo quanto levava: o peixe, o sal e até a canastra.
As cervejas artesanais, que começaram por ser feitas em pequena escala, muitas vezes em casa, têm vindo a ganhar terreno e quota de mercado. A produção tornou-se mais complexa. Até há poucos anos eram raros os equipamentos e as matérias-primas em Portugal, mas hoje já se vêem um pouco por todo o país. É na Oficina da Cerveja que funciona a “Sant’Ana Lx Brewery”, pioneira da cerveja artesanal em Lisboa. Ali acorrem dezenas de curiosos para participar no workshop Mestre Cervejeiro, querem saber mais sobre um mundo que absorve, apaixona, por ser tão fácil fazer algo tão bom. A descoberta surpreende: pensavam ser mais difícil, só ao alcance dos mestres, apoia- dos por grandes máquinas.
Além das empresas, surgem também novos bares e lojas que vendem cervejas artesanais dos mais variados tipos, portuguesas e estrangeiras. É o caso da Cerveteca, em Lisboa, que comercializa à volta de 100. A “Lager” está na linha da frente: é a mais vendida nos supermercados, mas não anda muito longe da Sagres ou Super Bock. Em alternativa há uma cerveja com chili, outra com aroma de flores e aquela de frutos vermelhos que sabe a tudo menos cerveja. Os preços variam entre os dois euros e os 22… e meio. Como os vinhos, umas bebem-se melhor no Verão, outras no Inverno, e também depende da comida. No Natal, saem melhor as que levam canela e especiarias. Na época quente, as frescas e frutadas.
O negócio da cerveja artesanal concorre cada vez mais com o da industrial, que é menos procurada pelos clientes devido à crise e a novos hábitos. O consumo per capita está nos 46 litros, o valor mais baixo dos últimos 12 anos, segundo dados da Associação Portuguesa dos Produtores de Cerveja (APCV). E se a crise angolana não ajuda, a cerveja artesanal procura o seu lugar ao sol apostando na diferença, em sabores e aromas mais fortes, indo à procura de quem quer qualidade mas, simultaneamente, naturalidade. A “Lucy” deu o mote, tornando-se em 2015 na primeira cerveja biológica portuguesa certificada. Tem 4,6 graus de álcool e os ingredientes são 100 por cento orgânicos.
O nome Faustino Microcer- vejeira não vem do acaso. É uma forma de marcar posição sobre as grandes marcas, que usam grãos estranhos à bebida para produzirem em larga escala e a preços reduzidos – os seus produtos são conhecidos no meio cervejeiro como “refrigerantes”, em contraponto à “qualidade artesanal”. Como outras empresas da área, a produtora da “Maldita” garante que só usa ingredientes de cerveja, não usa aditivos ou intensificadores de sabor, não filtra nem esteriliza, e o gás provém da fermentação da garrafa, sem injecção de dióxido de carbono.
A cerveja já foi a forma mais segura de beber água, por ter uma longa durabilidade, garantida pelas leveduras (os microorganismos responsáveis pela fermentação), que eliminam os agentes invasores. Diz quem sabe que as artesanais podem durar até cinco anos, mas a maioria tem validade de um. O seu menor teor alcoólico também provoca menos desidratação do que as outras bebidas. É por isso que há quem chama a cerveja “a bebida”. Porque será que o Kelevala, a epopeia nacional da Finlândia, tem mais linhas sobre a origem do fabrico da cerveja do que sobre a origem do Homem?