O encanto do Douro
“Não se vê por que maneira este solo é capaz de dar pão e vinho. Mas dá. Nas margens de um rio de oiro, crucificado entre o calor do céu que de cima o bebe e a sede do leito que de baixo o seca, erguem-se os muros do milagre. Em íngremes socalcos, varandins que nenhum palácio aveza, crescem as cepas como os manjericos às janelas. No Setembro, os homens deixam as eiras da Terra-Fria e descem, em rogas, a escadaria do lagar de xisto. Cantam, dançam e trabalham. Depois sobem. E daí a pouco há sol engarrafado a embebedar os quatro cantos do mundo.”
Tal como a Serra do Marão, Miguel Torga é único a descrever o que vê. No Marão viu um milagre, não quis acreditar como esta terra dava pão e vinho. Dá, e muito, um vinho tão bom que todo o mundo o conhece. A região integra o Alto Douro Vinhateiro, um vasto território classificado como património da humanidade e que resultou de uma ligação ancestral entre o homem e a natureza.
Vale do rio Douro é feito de encostas íngremes e solos pobres e acidentados, o que parecia impedir, à partida, qualquer cultura agrícola de valor nesta terra. No entanto, os durienses adaptaram-se, construindo os famosos socalcos, parcelas de terreno suportadas por muros que parecem degraus de uma grande escadaria. Neles começaram a produzir vinho há mais de 2 mil anos.
O Vinho do Porto é o mais conhecido. A sua “descoberta” é polémica, uma vez que alguns produtores ingleses defendem que os mercadores britânicos foram os responsáveis pela invenção, quando adicionaram brandy ao vinho, para que este não azedasse. Contudo, o processo já era utlizado desde os Descobrimento para conservar a bebida durante as longas viagens marítimas.
O segredo está no clima único mas também na fermentação, que não é completa, sendo interrompida numa fase inicial para adicionar aguardente vínica neutra. Assim o açúcar natural das uvas não se transforma completamente em álcool e o Porto é naturalmente mais doce e ao mesmo tempo mais forte.
A bebida alcançou fama mundial na segunda metade do século XVII, quando começou a ser exportada da cidade que lhe deu nome, especialmente para Inglaterra. Entre 1680 e 1749 o crescimento foi notável, tendo passado das 800 pipas iniciais para cerca de 19 mil. A empresa Croft foi das primeiras a exportar o néctar, seguida de outras companhias inglesas e escoceses. No entanto, os elevados lucros geraram situações de fraude, abuso e adulteração da qualidade do vinho, levando os principais produtores durienses a exigir intervenção do Governo.
Em 1756 o rei português, D. José, e o seu ministro Marquês de pombal, criaram a "Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro", formada pelos principais lavradores do Alto-Douro e homens bons da cidade do Porto”, sendo-lhes “confiada a missão de sustentar a cultura das vinhas, conservar a produção delas na sua pureza natural, em benefício da lavoura, do comércio e da saúde pública”. Esse diploma deu origem à mais antiga Região Demarcada do Mundo e permitiu praticar preços mais justos. Em 2016, as exportações de vinho da Região Demarcada do Douro atingiram os 365 milhões de euros.
A área demarcada tem apro- ximadamente 250 mil hectares, dos quais cerca de 45 mil são ocupados por vinha, e é dividida em três áreas: Baixo Corgo, Cima Corgo e Douro Superior. Em 2001, a Unesco classificou o Alto Douro Vinhateiro como Património da Humanidade. A superfície reconhecida corresponde a aproximadamente 10% dessa região e abrange 13 municípios: Alijó, Armamar, Carrazeda de Ansiães, Lamego, Mesão Frio, Peso da Régua, Sabrosa, Santa Marta de Penaguião, Tabuaço, São João da Pesqueira, Torre de Moncorvo, Foz Côa e Vila Real.
A classificação aumentou o turismo na região, bem visível nas viagens de comboio pela antiga Linha do Douro, com uma extensão de cerca de 200 quilómetros. A histórica locomotiva 0186 e as cinco carruagens percorrem a distância que vai da Régua ao Tua, numa viagem marcada pelo encanto natural: as encostas repletas de vinhedos e socalcos que se reflectem no rio, as quintas que vão aparecendo na margem, o comboio a passar por pontes e túneis. O veículo ferroviário faz parte de uma série fabricada pela empresa Henschel & Son que chegou a Portugal em 1924 como parte das indemnizações que a Alemanha teve de pagar devido à primeira Guerra Mundial.
Esta é a viagem mais histórica. Há uma outra muito apreciada pelos turistas, feita em barcos de cruzeiro. Alguns são autênticos hotéis flutuantes e as estadias chegam a prolongar-se por uma semana. Mais simples mas mais carismáticos são os famosos barcos rabelos, tradicionalmente usados para transportar as pipas de Vinho do Porto. São os últimos vestígios de uma época muito diferente da actual, marcada por uma profunda mudança na região. Os desportos náuticos vão ganhando força, surgem novos hotéis de cinco estrelas, o Douro aparece frequentemente na televisão. O turismo veio para ficar.