Descoberta sobre a complexidade cognitiva dos Neandertais

Descoberta sobre a complexidade cognitiva dos Neandertais
Foto: DR

Investigadores portugueses participam na descoberta da primeira estrutura complexa construída pelos neandertais em Gibraltar há 60.000 anos

 

Os nossos primos extintos, os Neandertais, não eram os brutos estúpidos, como por vezes são descritos. Cientistas que escavaram uma caverna em Gibraltar, no sul da Península Ibérica, encontraram evidências de que a espécie dominava um complexo processo industrial para produzir alcatrão como adesivo para fixar pontas de pedra em hastes de lanças.

 

Todas as culturas, por mais primitivas que sejam, utilizam colas, resinas e outras substâncias adesivas obtidas a partir de diferentes plantas devido às suas propriedades mecânicas ou medicinais. Os Neandertais não foram excepção. É sabido que os Neandertais utilizaram alcatrão produzido a partir de bétula como adesivo, para a aplicação de peças líticas em lanças de madeira e até como pastilhas, possivelmente com efeitos medicinais. No entanto, não se sabia como poderiam obter essa pasta adesiva. Estudos anteriores teóricos distinguiram dois possíveis métodos: um simples e muito pouco produtivo, por combustão ao ar livre da casca de bétula, e outro mais complexo que requer aquecimento sem oxigénio de pedaços de bétula. Ou seja, pedaços de madeira enterrados eram aquecidos no fogo para que exalassem a resina e não queimassem por estarem isolados do oxigénio. O facto de utilizarem um método ou outro também tem importantes implicações como medida da capacidade cognitiva dos Neandertais, porque o método mais complexo requer um grau significativo de organização e prática.

 

Um estudo científico que acaba de sair na prestigiada revista internacional Quaternary Science Reviews descreveu pela primeira vez uma estrutura em contexto Neandertal compatível com os estudos teóricos de aquecimento anóxico. A descoberta ocorreu na Gruta de Vanguard (Gibraltar), que faz parte do “Complexo de Cavernas de Gorham” e que é Património Mundial da UNESCO desde 2016. A estrutura parece um simples buraco, e essa simplicidade pode ter feito com que este tipo de estruturas não fosse identificado anteriormente. Somente através de uma infinidade de análises e da colaboração de uma equipa multidisciplinar foi possível demonstrar a sua utilização como câmara de aquecimento anóxica. A Gruta de Vanguard mostrou uma vez mais que é capaz de preservar autênticos instantâneos de um passado anterior à presença da nossa espécie humana na Península Ibérica, devido ao rápido avanço de uma duna litoral que selou os restos das actividades dos Neandertais.

 

Foi necessário um grupo de 31 investigadores de 5 países, especialistas em mais de 15 disciplinas diferentes, incluindo paleobotânica, arqueologia, icnologia, geoquímica e mineralogia, entre outras, para demonstrar que esta estrutura só poderia ser feita por Neandertais e qual o seu propósito. De facto, estes humanos considerados arcaicos foram pioneiros no desenvolvimento do sistema de “aquecimento anóxico” há 60 mil anos, projectando um forno no chão arenoso de uma caverna onde plantas específicas foram enterradas e aquecidas a centenas de graus para libertar e maturar a sua resina, sem arder. Foram desenvolvidas metodologias específicas para demonstrar esta conclusão, onde participaram investigadores portugueses, como o paleontólogo Carlos Neto de Carvalho, do Instituto D. Luiz da Universidade de Lisboa e Geopark Naturtejo Mundial da UNESCO, o geólogo Noel Moreira, investigador da Universidade de Évora e o geógrafo João Belo, da empresa FlyGIS. Foi ainda realizado um exercício experimental de arqueologia coordenado por Pedro Cura, reconhecido especialista do ITM - Instituto Terra e Memória, para demonstrar que a estrutura agora descoberta e as suas dimensões são viáveis para a obtenção de goma adesiva em quantidades úteis à preparação de armas de caça utilizadas pelos Neandertais. Com base nas evidências obtidas, interpretou-se que o alcatrão produzido na Gruta de Vanguard foi obtido a partir da esteva (Cistus ladanifer) em vez de bétula, árvore mais rara nas latitudes mediterrânicas da época. É muito sugestivo que dessa esteva ainda hoje em dia se obtenha, por destilação, óleo essencial de ládano que é muito apreciado na indústria dos perfumes, e que tenha sido utilizado como xarope para tosse ou como anti-séptico até o século XX, sendo obtido através de um método muito semelhante ao descrito no estudo.

 

Este trabalho, coordenado pelo Museu Nacional de Gibraltar, pela Universidade de Múrcia e pelo Instituto Andaluz de Ciências da Terra (CSIC), representa um marco na compreensão da mente e da capacidade cognitiva dos Neandertais e é, sem dúvida, um ponto de partida para a identificação destes fornos de preparação de alcatrão vegetal em outros sítios arqueológicos.

 

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