Os corcéis de Salomão

A biodiversidade portuguesa é salvaguardada pela Rede Nacional de Áreas Protegidas (RNAP), que entre parques, reservas, monumentos naturais e outras zonas protegidas, é composta por 46 espaços de norte a sul do país. Destes, seis possuem área marinha. Um dos mais importantes é o Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, onde a águia-de-bonelli partilha o domínio dos céus como falcão-peregrino, que com sorte pode ser visto junto às es­ carpas no voo sobre uma presa, quando atinge uma velo­ cidade entre os 300 e os 600 quilómetros por hora. Mais calma, a cegonha branca nidifica em palheirões, sobre as arribas marítimas ou em rochedos junto à costa, num equilíbrio periclitante. Todos os anos, por altura do Verão, o cabo de S. Vicente é o palco maior de um espectáculo da natureza: milhares de aves migradoras chegam pela aurora, vindas dos confins da Europa, e dali partem na noite estrelada, fazendo-se aos céus mar adentro, rumo ao norte de África.

Reza a lenda que há mais de 2 mil anos os navios fenícios recolhiam ouro, prata e pedras preciosas na foz do rio Cávado para entregar ao rei Salomão, em Jerusalém. Para agradecer a dedicação destes povos tão remotos, o rei enviou-lhes os mais belos corcéis daquele tempo, mas, ao chegarem ao destino, uma violenta tempestade dilacerou a frota contra a penedia. Por obra dos deuses, os célebres Cavalos de Fão ficaram petrificados e eternamente cativos destas águas oceânicas, que ora acariciam a rocha, ora batem em espumosa fúria. Na costa do Parque Natural do Litoral Norte, os limites da terra e do mar confundem-se ao ritmo das marés. Os 16 quilómetros são como que um país à parte, cheio de recifes e florestas de luminárias, espécie de bosques submarinos onde se alimentam e reproduzem mais de 100 espécies de peixes, muitos com elevado valor comercial, como o robalo e o sargo. É nestes recifes, alguns com 18 metros de altura, que poisam e se abrigam inúmeras aves, 14 delas com estatuto de ameaça, casos da águia-pesqueira e do corvo-amarinho-de-crista.

O airo Uria aalgae, semelhante a um pequeno pinguim, é o símbolo da Reserva Natural das Berlengas, a escassas milhas do cabo Carvoeiro. Cada fêmea deposita o seu único ovo em pequenas prateleiras das escarpas inacessíveis ao homem. O arquipélago, composto por três grupos de ilhéus, é um dos principais locais de nidificação e passagem de aves do Atlântico Norte, e o único, no continente europeu, onde nidificam o roquinho e a população atlântica de cagarra. Os vários tipos de golfinhos caçam os grandes cardumes de sardinha e outras espécies que se alimentam de plâncton e que partilham as águas com um peixe raro e de grande valor conservacionista, o mero Epinephelus marginatus, conhecido por garoupa-verdadeira.

As Berlengas são consideradas o maior viveiro natural da costa oeste atlântica, não só por serem a fronteira entre as águas frias e quentes, mas também por beneficiarem da proximidade ao canhão da nazaré. Em 2012, a expedição a bordo do antigo bacalhoeiro "Creoula" observou 50 novas espécies subaquáticas a juntar às cerca de 400 já conheci­ das. A grande novidade foram as duas algas - "Gloiocladia microspora e Digenea simplex") -, típicas do Mar Mediterrâneo. A bióloga Estibaliz Berecibar acredita que cada vez mais as Berlengas "são o limite norte para muitas espécies do Mediterrâneo", que nos últimos anos começaram a expandir-se para a costa oeste do Atlântico. "A paisagem debaixo de água está a ficar mais tropicalizada", explicou, na altura, à agência Lusa. As alterações climáticas serão uma das razões, mas o coordenador da missão, Frederico Dias, não descura também as correntes marítimas "que saem do Estreito de Gibraltar e que têm tendência a virar para norte", permitindo a fixação de espécies nas Berlengas. Por outro lado, a oeste do arquipélago situa-se um importante "corredor marítimo de navios da Marinha mercante oriundos do Mediterrâneo", cujos cas­ cos poderão trazer algumas dessas espécies que acabam por conseguir sobreviver e desenvolver-se nas Berlengas.

Não menos rico em fauna e flora marítimas é o Parque Natural da Arrábida, hotspot europeu de biodiversidade, o que quer dizer que é uma das áreas mais importantes a preservar no planeta. Da foz do Sado até ao Cabo Espiche! vivem cerca de 1400 espécies de fauna e flora, muitas de­ las com grande importância ecológica e conservacionista. É o caso da única população de golfinhos-roazes existente no país e do polvo, principal espécie alvo da frota licencia­ da do Parque Marinho Professor Luiz Saldanha. Aqui podemos encontrar também a emblemática Pedra de Ameixa, um ilhéu com mais de 200 espécies de algas e inverte­ brados marinhos.

Em 2014, durante uma campanha oceanográfica de levantamento da biodiversidade marinha, foram identifica­ das 60 espécies até então desconhecidas na região, entre as quais 30 briozoários (pequenos animais que formam colónias, com esqueleto microscópico em forma de caixa), quatro esponjas, três moluscos, 14 algas e um peixe, o cabaz. A expedição serviu também para lançar o Visualiza­ dor MorBis, primeira fase da versão online de acesso público com o mesmo nome, uma base de dados que incorpora um sistema de mapeamento da biodiversidade marinha portuguesa. Essa informação é considerada de­ terminante para que Portugal cumpra os compromissos relativos ao processo da União Europeia de extensão da Rede Natura 2000 ao meio marinho.