Um escritor e um homem essencial para a “instalação da reflexão”
Encontrar Rui Zink é uma respiração, uma inspiração neste país em crise. Professor universitário há 30 anos e autor de mais de 30 livros, animador da vida cívica, esteve também na famosa emissão “A Noite da Má Língua” que esteve no ar entre 1994 e 1997, na SIC, quando a televisão privada fez soprar um vento de inovação e um espírito mais aberto. Ninguém em Portugal esqueceu esses debates um pouco surrealistas. Havia de tudo um pouco. Ultimamente, Rui Zink apresentava com a historiadora Raquel Varela uma conferência sobre as receitas para lutar contra a crise no teatro Villaret sob o título Uma modesta proposta para tirar o país da crise.
Polémico, provocador, humorista, Rui Zink é sobretudo um excelente escritor e pensador duma extrema lucidez e interessado em tudo. No seu último livro, A instalação do medo, publicado em 2012, fala de todos os tipos de medo e sobretudo do mais perigoso, o horror económico. Rui Zink vive profundamente os seus livros que têm uma grande parte autobiográfica. Não podemos ser indiferentes aos seus avisos. É urgente pensar e repensar, numa sociedade onde mesmo os intelectuais se desinteressam com orgulho pela cultura, uma sociedade que só quer funcionar de pressa numa lógica de consumismo e de rentabilidade.
Fale-nos do seu último romance
A instalação do medo saiu em Outubro de 2012 e já teve uma adaptação para o teatro amador em Portugal e outra na Galiza. Teve ainda uma estreia profissional no Teatro São Luiz em Março de 2014 encenado pelo lendário Jorge Listopad. Sendo um romance, tem uma estrutura muito teatral como muitos dos meus livros. E uma ideia muito simples. Dois homens batem à porta. Uma Senhora abre e eles dizem : «Bom dia, minha senhora, viemos para instalar o medo. E, vai ver, é uma categoria». A partir duma situação banal, o livro vai mostrar os vários medos que eles têm. Têm, aliás, um catálogo, sendo que o principal medo é o horror económico. Este livro é parecido com outro que publiquei em 2008, O Destino Turístico, que é um livro de prevenção que fala de um futuro próximo. A instalação do medo fala de algo que já está a acontecer. Os dois utilizam uma estratégia semi-surrealista. No Destino Turístico, o leitor é levado a pensar que está em Bagdad, num país em guerra, quando na verdade está em Portugal. A instalação do medo parte duma situação kafkiana, todos nós conhe- cemos Kafka ou Beckett À Espera de Godot. Para falar deste amesquinhamento quotidiano que nós portugueses somos vítimas todos os dias. Estamos a ficar mais mesquinhos e estamos não só a ficar mais pobres nos bolsos mas também na nossa cabeça. O empobrecimento mental é geral mas é mais geral quando as pessoas estão com medo, quando sentem que estão em crise. A crise é sempre meio real, meio inventada.
Existem lados positivos na crise?
Em todas as situações existem lados positivos. Se uma pessoa cair e tiver um acidente e ficar de cama no hospital aproveita para refletir. Há um proverbio português que diz Não há males que não venham por bem. Mas eu não sou daqueles que acham que a pobreza faz bem. É muito simples. Sou professor e escritor. E gosto duma sociedade que esteja disposta a pagar e a consumir o que eu faço. Não acho graça ficar pobre, não acho graça dar aulas de graça, não acho graça vir cansado para casa, não acho graça não ter tempo para escrever os meus livros. E neste momento o que está a ser feito é que, de repente, os professores que davam aulas a 20 alunos passam a dar a 40. Poupa-se mais, mas é pesado para mim. Não é agradável e não é estimulante depois dos 50 anos ficar estrangulado economicamente. É por isso que eu compreendo do ponto de vista filosófico que haja procura de novas soluções, mas eu não gosto de uma nova solução que me retira 70% do meu rendimento. E foi isso que aconteceu nos últimos dez anos com a crise. Passei duma sociedade onde me convidavam de vez em quando para escrever pago, uma coisa que eu mereço fazer, para de repente escrever no Facebook. Irrita-me não haver um jornal onde eu escrevo uma crónica paga. Irrita-me quando eu chego a um jornal prestigiado e ofereço o meu artigo e como é oferecido eles publicam mas nem sequer pagam um tostão. Portanto eu não acho graça à crise. Não acho estimulante. Acho uma ideia perigosa considerar que a crise é estimulante. Mas acho uma ideia fértil uma pessoa não ficar só a choramingar e daí tirar soluções criativas.
Agora o que me irrita são os chavões e o meu último livro é contra esses chavões, esses clichés. Por exemplo, o facto que nós andamos a viver acima das nossas possibilidades. Eu não andei. Outro exemplo.
Há responsáveis por tudo isso?
Os nomes dos criminosos estão no Diário da República. O ministro que adjudicou uma autoestrada da qual Portugal não precisava como a A8 que vai até Leiria e que duplica a autoestrada Lisboa-Porto. Muitas vezes fica apenas a dez quilómetros e não tem ninguém. Mas essa autoestrada foi alguém que mandou construí-la, alguém fez dinheiro com isso. E mais. Há caso de pessoas que enquanto ministros encomendaram a obra e depois foram para presidentes ou vice-presidentes da empresa encarregada da maior parte da obra. Tudo isso está no Diário da República. Em Portugal o criminoso é muito fácil de descobrir. Imagino sempre um Sherlock Holmes vir para Portugal e dizer “vamos tentar descobrir os indícios”. E Watson responder: “Sherlock, Sherlock estão aqui os nomes”. E o Sherlock a insistir : “Não, vamos ver os indícios”. E Watson: “Sherlock, estão aqui os nomes no Diário da República.”
Houve uma cultura geral de não pagar impostos, de fuga aos impostos que ainda hoje é permitida por lei. Lembro-me dum presidente do Benfica que declarava apenas o salário mínimo e depois vinha na revista Caras a dar festas de arromba. Isso são exemplos de discordância óbvia. Um sistema não funciona sem gente que esteja a trabalhar para ele. O problema quando uma pessoa diz é o sistema, é que a certa altura temos os próprios cúmplices do sistema a fazer um discurso contra o sistema. É como ter um mafioso a dizer “sim Senhor é uma vergonha a mafia”. Tem de haver nomes, não por serem os políticos, mas porque tem de haver pessoas concretas. O mundo faz-se com pessoas concretas. Estou farto de ver pessoas que generalizam. Nós temos uma figura que estava no governo e já parecia estar na oposição. Temos pessoas concretas que jogam nos dois lados.
Tem que sobreviver …
Esta expressão tem que sobreviver é uma vergonha. Há uma tradição fraca em Portugal de cidadania e de intervenção cívica. Há muitos anos com alguns amigos criamos uma associação que fez de facto o bem em Portugal, a Associação de Cidadãos Auto-Mobilizados, e tenho na minha consciência que somos um dos agentes que ajudou a mudar um bocado a cultura da violência rodoviária. Fomos de facto fundamentais e em 14 anos ajudámos. Muitas outras associações foram criadas por inspiração da nossa. Fui ensinado a não apontar os defeitos aos outros sem fazer uma autoanalise. Uma pessoa veio mesmo dizer-nos: “vocês deviam abrir aqui uma delegação na minha terra que também tem muitos problemas”. E foi muito engraçado porque esta pessoa estava a falar connosco como se estivemos a criar um partido.
Texto original por Clément Puippe e Edite Correia.