A Estrela quer ser geoparque
O Vale Glaciar do Zêzere, a vila de Belmonte a as Penhas Douradas são algumas das atracções do Aspiring Geopark Estrela.
Alta, imensa, enigmática, a sua presença física é logo uma obsessão. Mas junta-se à perturbante realidade, uma certeza mais viva: a de todas as verdades locais emanarem dela. Há rios na Beira? Descem da Estrela. Há queijo na Beira? Faz-se na Estrela. Há roupa na Beira? Tece-se na Estrela. Há vento na Beira? Sopra-o a Estrela. Tudo se cria nela, tudo mergulha as raízes no seu largo e eterno seio. Ela comanda, bafeja, castiga e redime. No livro Portugal, de 1950, Miguel Torga descreve assim a importância da serra mais alta de Portugal continental para toda a região envolvente. É a Estrela que dá nome ao aspirante português a geoparque da Unesco - Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. A candidatura foi entregue em Novembro do ano passado, esperando-se agora uma decisão favorável até à Primavera de 2019.
Hoje, como há 20 mil anos, é a natureza que dita a vida e a morte neste local. Nessa época, o que actualmente conhecemos como Serra da Estrela era uma enorme e compacta placa de gelo, com uma superfície de cerca de 70 Km2 e espessura de 80 metros, que cobria o planalto onde está a Torre. Com o aumento da temperatura, o gelo começou a derreter, deslizou encosta abaixo e formou cinco vales, que moldam a paisagem que vemos.
O mais conhecido é o do Zêzere, um dos maiores da Europa, com cerca de 13 km. Da estrada que nos conduz à vila de Manteigas, lá ao fundo, contemplamos esta obra de arte criada por forças naturais. Na descida, o gelo arrastou grandes blocos de granito, que deram origem a um planalto de rocha, com lagos, charcos e prados húmidos. Um dos locais mais bonitos é o Covão d’Ametade, uma antiga lagoa glaciar, mal drenada, por onde corre o rio Zêzere, ladeado por bétulas, conhecidas por criarem um ecossistema com grande biodiversidade. Daqui observamos os famosos cântaros Gordo, Raso e Magro, três afloramentos graníticos com 1875, 1916 e 1928 metros de altura, respectivamente. O Magro é atravessado pela Rua dos Mercadores, uma fenda profunda e estreita que surgiu numa zona de rocha dolerítica, menos resistente à erosão.
Mais adiante fica a Nave de Santo António, uma zona plana ocupada por sedimentos e blocos rochosos conhecidos por “moreias”, formadas pelo deslizamento do gelo, que aqui largou o célebre Poio do Judeu, o maior bloco errático da Serra da estrela, com cerca de 150 m3. E eis que chegamos ao ponto mais alto de Portugal continental, o planalto da Torre, onde as lagoas e rochas polidas e estriadas pelo gelo evidenciam a presença glaciar.
O Centro Interpretativo do Vale Glaciar do Zêzere, em Manteigas, permite ao turista simular uma viagem de balão por esta maravilha da natureza, sujeito às intempéries que se fazem sentir na Serra da Estrela e que tornam a experiência mais real. O espaço, inaugurado em 2013, dispõe de um ecrã gigante onde podemos percorrer milhares de anos de história e conhecer de perto covões, rochas, lagoas e cascatas, tudo graças à tecnologia 3D.
Esperar pela Unesco até 2019
O Aspiring Geopark Estrela abrange uma área de 2.216 km2, na qual vivem 170 mil pessoas, distribuídas por nove municípios: Belmonte, Celorico da Beira, Covilhã, Fornos de Algodres, Gouveia, Guarda, Manteigas, Oliveira do Hospital e Seia. Os trabalhos da candidatura começaram em 2014. No ano seguinte foi assinado o memorando de entendimento com os municípios e em 2016 surgiu a Associação Geopark Estrela, com sede na Guarda.
O objectivo é proteger, estudar e valorizar o património natural e cultural deste território, especialmente a riqueza geológica, cuja história começa há mais de 650 milhões de anos. Ao mesmo tempo, os responsáveis pretendem contribuir para o desenvolvimento sustentável dos nove municípios, melhorando a qualidade de vida das populações através da aposta no turismo, no desporto, nas artes e na cultura. Nem poderia ser de outra forma, tendo em conta que essa é uma das bases para uma possível classificação pela Unesco.
A pensar no amanhã, o Aspiring Geopark Estrela criou já uma rede de percursos interpretativos, “Turismo para todos” e “Património e paisagem”, com cinco trajectos por alguns dos pontos mais emblemáticos deste vasto território. O primeiro, que em parte já descobrimos nas linhas acima, chama- se “Da Egitânia aos Montes Hermínios”, referências clássicas que despertam a curiosidade dos visitantes.
O segundo percurso, “Da história à montanha”, começa na linda vila de Belmonte, onde nasceu o navegador Pedro Álvares Cabral, que dirigiu a segunda armada portuguesa à Índia, descobrindo oficialmente o Brasil no caminho. Somos guiados, depois, a um dos mais belos locais da Serra da Estrela, o Vale Glaciar de Alforfa, em forma de ‘U’, como o do Zêzere. Estes e outros vales servem de pastoreio aos rebanhos de ovelhas que dão o famoso Queijo Serra da Estrela e a lã da qual se faz o burel, exportado para todo o mundo (ver caixa). Já não há tantos pastores como outrora, mas os que resistem ainda usam no Inverno as capas deste tecido, conhecido por ser muito duradouro.
Das Penhas Douradas ao Poço do Inferno
“Do Alva ao Mondego” leva-nos a uma das aldeias mais altas de Portugal, Sabugueiro, onde o Forno Comunitário mostra bem a adaptação do Homem a este ambiente de montanha. Daqui observamos o último arco morénico: o gelo, ao deslizar, largou vários sedimentos e blocos rochosos, que formaram uma espécie de arco. Adiante encontramos a nascente do rio Mondego, o “Mondeguinho”, a uma altitude de 1525 metros. O melhor ficou para o fim: as Penhas Douradas, com uma vista deslumbrante para a singela vila de Manteigas e todo o vale do Zêzere. É talvez a paisagem granítica mais sublime do território candidato a geoparque. Em 1880, o médico José Tomás de Sousa Martins, especialista no combate à tuberculose, considerou este o lugar mais saudável de Portugal, devido aos “bons ares”.
Como é que um rochedo deste tamanho se equilibra assim há tanto tempo? É a pergunta que fazemos ao ver o Penedo do Sino, também conhecido por “pedra sineira”, uma espécie de pedestal que descobrimos perto de Celorico da Beira, ponto de partida do quarto percurso, “Entre o granito e o glaciarismo”. Neste local fica a grande necrópole medieval de São Gens, com 54 sepulturas abertas no granito. Encontramos a seguir a Fraga da Pena, um povoado pré-histórico da Idade do Bronze com uma extensa estrutura defensiva semicircular. No interior, foram descobertos objectos em cerâmica, pontas de flecha, colares e machados de pedra, entre outros artefactos.
Parece, realmente, a cabeça de um velho, e é assim mesmo que chamam à rocha de granito que a natureza desenhou a 1.500 metros de altitude. Avançamos mais um pouco e eis que chegamos, então, à Lagoa Comprida, a maior do maciço superior da Serra da Estrela, resultante da última glaciação, há cerca de 30 mil anos. Desse período resistem diversas rochas nuas, polidas e estriadas, além de blocos erráticos. Aproveitando o covão, construiu-se aqui uma barragem, cuja albufeira tem capacidade de cerca de 12 milhões de m3 de água e inunda uma área de 800 mil m2.
Poço do Inferno. O nome poderá assustar quem não conhece, mas a curiosidade fala mais alto: milhares de turistas arriscam subir a íngreme escadaria para ver o poço, a 1080 metros de altitude, que ostenta uma das mais belas cascatas de Portugal, com cerca de dez metros e uma pequena lagoa de água cristalina. Assim começa o último trajecto, “No coração da montanha”, que na verdade são dois percursos para outros tantos dias. Há locais conhecidos e outros novos, como a Lagoa Seca, cheia de blocos morénicos, vestígios de quando uma língua de gelo com 300 metros de espessura ocupava o Vale Glaciar do Zêzere.
O Seixo Branco é diferente de tudo o que vimos até aqui – trata-se de um filão de quartzo róseo que brota como uma flor neste canteiro cinzento de granito. Alcançamos, por fim, a famosa Lagoa das Salgadeiras, uma das mais visitadas da região por ser de fácil acesso e ter uma paisagem deslumbrante. Até parece que alguém, ao comando do glaciar, desenhou cenários como este, tal a sua perfeição.